sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Zadig ou o Destino (Voltaire) Parte II - O Nariz

ZADIG OU O DESTINO - Uma história oriental

II. O NARIZ

Um dia Azora voltou de um passeio muito encolerizada e com grandes exclamações.

- Que tens, minha querida espôsa? Quem te pôs nesse estado?

- Ah! ficarias como eu, se visses o que acabo de presenciar. Fui confortar a viúva Cosru, que há dois dias edificou um túmulo para seu jovem espôso, junto ao arroio que banha as redondezas. Na sua aflição, prometera aos deuses que ficaria junto do túmulo enquanto lhe corressem ao lado as águas do arroio.

- Pois então! Eis aí uma estimável mulher que amava verdadeiramente a seu marido!

- Ah! se soubesses em que se ocupava ela quando a fui visitar!

- Em que, minha bela Azora?

- Ela estava mandando desviar o arroio.

E Azora alongou-se em tais invectivas, explodiu criminações tão violentas, que não agradou em nada a Zadig tamanha ostentação de virtude.

Tinha este um amigo chamado Cador que era um daqueles jovens a quem sua mulher atribuía mais
probidade e mérito que aos outros: confiou-lhe os seus pensamentos e assegurou-se, como podia, da sua fidelidade, dando-lhe um valioso presente.

Azora, que passara dois dias no campo em casa de uma amiga, regressou no terceiro dia. Criados em pranto anunciaram-lhe que o marido, Zadig, morrera subitamente naquela noite e que, não ousando levar-lhe essa infausta notícia, acabavam de sepultá-lo no túmulo de seus pais, ao fundo do jardim. Ela chorou, arrancou os cabelos e jurou morrer. À noite, Cador pediu-lhe licença para lhe falar, e choraram ambos. No dia seguinte, choraram menos, e jantaram juntos.

Cador confessou que o amigo lhe deixara a maior parte de sua fortuna, e deu a entender que a maior ventura, para ele, seria compartilhá-la com Azora. A dama chorou, irritou-se, voltou às boas; a ceia foi mais longa que o jantar; falaram-se com mais confiança: Azora fêz o elogio do defunto, mas confessou que Zadig tivera em vida alguns defeitos de que Cador era isento.

Durante a ceia Cador queixou-se de uma violenta pontada no baço; a dama, inquieta e solícita, mandou trazer todas as essências com que se perfumava, a fim de ver se alguma não seria boa para aquilo; lamentou muito que o grande Hermes já não estivesse em Babilônia; dignou-se até a tocar no ponto onde Cador sentia dores tão agudas.

- E tens muito seguido esses cruéis ataques? - perguntou-lhe, cheia de compaixão.

- Levam-me às vêzes à beira do túmulo, e só há um remédio que me dá alívio: é aplicar no local o nariz de um homem falecido na véspera.

- Estranho remédio! - espantou-se Azora.

- Não mais estranho - respondeu Cador - que os saquinhos do senhor Arnoult contra apoplexia. - A esta razão, juntamente com os extraordinários méritos do jovem, rendeu-se afinal a dama:

"Em todo caso - disse ela consigo, - quando meu marido, na ponte de Tchinavar, passar do mundo de ontem para o mundo de amanhã, será que o anjo Asrael deixará de lhe dar passagem, só porque ele vai ter o nariz um pouco mais curto na segunda vida do que na primeira?" Tomou, pois, uma navalha; foi ao túmulo do Zadig , seu esposo, e regou-o de lágrimas, e aproximou-se para cortar o nariz de Zadig, que encontrou estendido na tumba.

Zadig ergueu-se, defendendo o nariz com uma das mãos e detendo a navalha com a outra.

- Senhora, disse ele, não clame tanto assim contra a viúva Cosru: o projeto de me cortar o nariz vale bem o de desviar um arroio.

Amanhã tem a Parte III - O Cão e o Cavalo.

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