quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Um conto de Natal

Estava na cidade onde nasci, no interior do interior de Minas Gerais. Depois que fui embora, esta é a segunda vez que retornava. A noite era longa e dolorosa; a sensação era de que o tempo estacionara numa plataforma de embarque e lá ficara. O calor úmido abafado, o ventilador lento, a água tépida na jarra e o cansaço eram as companhias mais desagradáveis e indesejáveis do mundo.

A morte é momento de dor e reflexão, pensava, enquanto a enfermeira ajeitava o meu pai no leito, já em incansável agonia de luta e desespero pelo fio da vida que ainda teimava em resistir. 

Nunca nos demos, nunca fomos amigos, nunca conversamos sobre algum assunto de interesse mútuo. Cresci sem ouvir conselhos. Meu pai era um homem simples, trabalhador, tinha a virtude de ser um homem correto, honesto e alegre, mas estas percepções eram na rua e no trabalho.

Aos filhos, todas as noites, eram apenas um homem confuso, bruto e alcoolizado, que batia, brigava e atropelava quaisquer manifestações de carinho. Minha  mãe não se manifestava. Depois das surras ou broncas, entravam para o quarto e durante anos eu e as duas irmãs ficávamos imaginando o que ele fazia de tão ruim para que ela gemesse alto e ele a xingasse. Às vezes minha mãe gritava tanto que íamos dormir agarrados uns aos outros chorando.

Assim, dia após dia, semana após semana, anos a fio, a cena não mudara - pai alcoólatra, mãe submissa e filhos órfãos de carinho. Aos dezesseis anos fui embora pra o Rio de Janeiro. Voltei aos quarenta e dois no velório dela e agora aos cinquenta e três anos para acompanhar seu calvário. Minhas irmãs, que nunca mais vi, foram juntas para São Paulo dois anos depois da minha partida. Mamãe é que dava as notícias quando eu telefonava e ele ficava lá de longe, aos berros - desliga esta merda, esta desgraça nem sabe mais como estamos e fica ligando... depois que desligava, ficava imaginando os dois no quarto, ela gemendo e ele falando palavrões.

Recebi o telefonema da minha tia para que viesse rapidamente me despedir . A princípio desejei não voltar. Aquilo era demais para mim. Apanhara por tudo e por nada, nem sequer me deu uma bala chita de presente, nunca soube onde estudei, nem mesmo em que me formei. Um bêbado, ruminava, enquanto ela implorava pela minha presença.

Ainda não rompeu a alvorada, e o tempo estava meio esquisito, com chuva e apagões elétricos. Meu pai... puta que o pariu... que pai foi este? Quem é este homem moribundo na minha frente? Chamou-me com as mãos para que aproximasse. Tive medo, receio e nojo, mas fui chegando na cama. Levantou a mão direita trêmula, afagou meu rosto, olhou na minha alma e pediu perdão de uma forma que não sei explicar. Choramos muito, abracei-o - era o meu pai. Despediu-se assim, com meu perdão e com o abraço que nunca tive... naquela manhã de Natal.

É isto aí!

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