quinta-feira, 9 de abril de 2015

O beijo fatal

Marcinha Carolina tinha dois mil trezentos e quarenta motivos para ser feliz. Anotava cuidadosamente num diário manual, destes com cadeado de segredo, os minutos que desfrutava da presença de Epaminondas Flausino. O moço era seu pretendente secreto, de tal forma que mal se comunicavam, salvo por leves acenos e palavras básicas de saudação trivial. Mas anotava - hoje falei "olá Epaminondas Flausino. Como tem passado? Está calor hoje, não acha?"

Usava destes expedientes decorados de longas falas cronometradas para que chegasse à pelo menos um minuto de contato. Por que pelo rapaz, a resposta era sempre rápida e objetiva, com tempo médio de dois segundos, segundo constava do diário. Sonhava em casar de véu, grinalda, vestido longo e fechado em gola, com detalhes arabescos e um lindo arranjo de flores perfumadas. 

O tempo passou, milhares de minutos se esvaíram sem sentido e até a virgindade de Marcinha já cogitava uma manifestação pública quando os hormônios a derretiam pelas calçadas e vias públicas da pacata cidade da sua vida. Há muito Epaminondas se casara com Dorinha Virtudes, uma levianazinha vulgar da periferia. Aquilo feriu de morte os desejos da moça. Imagina só, casou com uma "furada", cortesã dos rapazes da cidade, uma qualquer sem eira ou beira. 

Um dia acordou revoltada com tudo. Cansou de ser o imenso vazio dentro de um corpo divino onde se manifestavam as maiores obras da natureza humana. Passou seu perfume clássico, vestiu uma roupa branca, com a saia só um pouco abaixo do joelho, o que por si só já era uma aberração, não prendeu o cabelo, experimentou um batom claro, e de salto baixo, para não perder de vez a compostura, jurou ir à caça. Estava louca, dizia a si mesma, para dar para alguém e este alguém haveria de ser seu amado Epaminondas.

Atravessou a cidade, chegou à residência do seu objeto de desejo, e ao soar a campainha, veio a esposa, educada e tranquila. Cumprimentou-a com desprezo, afastou-a com leve toque da sombrinha londrina, e adentrou em frenesi, buscando o que viera caçar. Dorinha ficou do portão, estática, procurando entender o momento, enquanto Marcinha adentrava sem nenhum pudor, num silêncio latejante e passos firmes.

Não o encontrando, voltou-se aos gritos para a dona da casa, pedindo uma explicação pela ausência do amado. Estava transtornada, histérica, excitada e descontrolada. Dorinha foi se aproximando devagar, fez o clássico sinal de pedido de calma com as mãos, abraçou-a e em prantos sussurrou 

- Marcinha, ele me deixou, abandonou a casa e fugiu com uma pessoa. (abraçou mais forte)
- Como assim, Dorinha? Uma pessoa, quem? 
- O Carlão do Táxi. (deu um aperto com os dedos nas costas)
- O Carlão? Mas como foi isto, o Carlão deu fuga para ele?
- Não, Marcinha, o Carlão foi a fuga dele. (alisou as costas da Marcinha)
- Dorinha, não entendi ainda.
- Ele é gay, Marcinha, gay, veado, bixa, boiola. (apertou mais ainda o abraço)

Ao tentar sair do abraço, Marcinha não conseguiu evitar a boca de Dorinha colar à sua, com a língua em franca invasão entre seus lábios. Empurrou-a com rispidez e saiu em desembalada carreira, aos prantos e confusa. Chegou em casa, falou que resolvera aceitar o convite da sua tia para umas férias na capital, fez as malas e sumiu.

Naquela noite, ao chegar cansado do serviço, Epaminondas Flausino encontrou Dorinha Virtudes em euforia plena. Amaram-se como um casal insaciável e ela ria de dar gargalhadas, sem explicação nenhuma, apenas ria despudoradamente. 

É isto aí!


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