sábado, 3 de setembro de 2016

O Medo (Carlos Drummond de Andrade)

O Medo
Em verdade temos medo. 
Nascemos no escuro. 
As existências são poucas; 
Carteiro, ditador, soldado. 
Nosso destino, incompleto. 
E fomos educados para o medo. 
Cheiramos flores de medo. 
Vestimos panos de medo. 
De medo, vermelhos rios 
Vadeamos. 

Somos apenas uns homens e a natureza traiu-nos. 
Há as árvores, as fábricas, 
Doenças galopantes, fomes. 
Refugiamo-nos no amor, 
Este célebre sentimento, 
E o amor faltou: chovia, 
Ventava, fazia frio em São Paulo. 
Fazia frio em São Paulo... 
Nevava. 

O medo, com sua capa, 
Nos dissimula e nos berça. 
Fiquei com medo de ti, 
Meu companheiro moreno. 
De nos, de vós, e de tudo. 
Estou com medo da honra. 
Assim nos criam burgueses. 
Nosso caminho: traçado. 
Por que morrer em conjunto? 
E se todos nós vivêssemos? 
Vem, harmonia do medo, 
Vem ó terror das estradas, 
Susto na noite, receio 
De águas poluídas. Muletas 
Do homem só. 
Ajudai-nos, lentos poderes do 
Láudano. 

Até a canção medrosa se parte, 
Se transe e cala-se. 
Faremos casas de medo, 
Duros tijolos de medo, 
Medrosos caules, repuxos, 
Ruas só de medo, e calma. 
E com asas de prudência 
Com resplendores covardes, 
Atingiremos o cimo 
De nossa cauta subida. 
O medo com sua física, 
Tanto produz: carcereiros, 
Edifícios, escritores, 
Este poema, 
Outras vidas. 

Tenhamos o maior pavor. 
Os mais velhos compreendem. 
O medo cristalizou-os. 
Estátuas sábias, adeus. 
Adeus: vamos para a frente, 
Recuando de olhos acesos. 
Nossos filhos tão felizes... 
Fiéis herdeiros do medo, 
Eles povoam a cidade. 
Depois da cidade, o mundo. 
Depois do mundo, as estrelas, 
Dançando o baile do medo.

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