sábado, 12 de agosto de 2017

Eu encontrei o amor dos meus sonhos

Rezou a noite toda pedindo a graça. Chorou, implorou, fez o Ofício de Nossa Senhora pelo menos umas três vezes, rezou o rosário com os quatro mistérios, fez a ladainha de São José, fez a Ladainha de Nossa Senhora, clamou em voz alta os salmos 28; 35 e 57. Explicou detalhadamente a cada santo, a cada anjo, a cada arcanjo, ao menino Jesus, a Deus, a Jesus Ressuscitado, enfim, deu todas as coordenadas para encontrar a sua cara metade.

As pernas já estavam dormentes, as câimbras iam e vinham, e ele ali, no sentido que achava reto. Era agora ou nunca, o o céu dava o que queria ou estaria com muita má vontade. Fez a campanha do quilo da Conferência São Vicente de Paulo, participou de cinco missas na semana, todas às seis da manhã, fez boas ações, ajudou idosos, visitou hospitais, foi nos asilos, nas creches, distribui sorrisos e palavras de consolo, enfim fez todas as bem-aventuranças que conhecia.

Sete horas da manhã, mal se aguentando pela dor nas pernas refletindo na coluna, tomou um banho frio, intenso, sem dar um gemido, pois fazia parte da conclusão da penitência. Tomou dois copos de água benta, benzeu-se três vezes antes de cada gole. Glorificava o Altíssimo, dava graças à vida e sentiu-se finalmente fortalecido. Vestiu o terno de cambraia azul claro, por sobre uma camisa gelo e uma gravata borboleta de azul marinho com minúsculas bolinhas também em tom gelo. Calçou o sapato social de verniz preto sobre uma meia preta e saiu sem olhar para trás.

Na porta lembrou-se de escovar os dentes. Voltou ao banheiro, retirou o paletó, as botoaduras de prata, desabotoou os dois botões do punho e dobrou parcimoniosamente a manga da camisa e caprichou na higiene bucal como nunca fizera antes, utilizando um dentifrício branqueador dessensibilizante. Reconstituiu-se e saiu à porta. A barriga fez um movimento conhecido, e era fiel ao horário. Foi ao quarto, retirou toda a roupa, peça por peça, colocando em cabides postados numa arara entre dois suportes da parede. Nu, voltou ao banheiro. Sentiu a necessidade de ler algo, travou a vontade e correu na sala, escolhendo Os Miseráveis, achou grosso demais, desistiu, o travamento estava estuporando, pegou um fininho, de contos machadianos e correu ao vaso.

Vitorioso e aliviado pela obra, dirigiu-se ao banho novamente, pois era de costume banhar-se após a batalha naval em águas profundas de vasos comunicantes. Enxugou calmamente, foi ao quarto, sentou-se à cama, e enxugou em detalhes ritualísticos e anatômicos, os pés. Findo o processo, revestiu o terno de cambraia azul, mas não gostou da gravata. Trocou-a por uma longa, clássica, vermelha com diagonais azuis escuras, e aquilo pedia uma camisa creme. Trocou a camisa, colocou a gravata, vestiu a calça, o paletó, prendeu o suspensório, afivelou o cinto e saiu à rua. Lembrou-se de que não havia se barbeado.

Retornou à casa, foi ao quarto, tirou toda a roupa, foi ao banheiro, ligou o chuveiro elétrico, aguardou a água superaquecer, ensopou uma toalha com aquela calda quente e colocou sobre o rosto, com um gemido contido e uma expressão de dor. Aguardou 6 minutos e 18 segundos, vigiado no relógio do corredor, estrategicamente de frente para a porta. Fechou a janela e a porta do banheiro para não pegar ar frio, retirou lentamente a toalha, passou um creme de barbear importado mentolado, e solenemente, quase em êxtase, escanhoou a face para que ficasse glabra, definitivamente glabra ao toque suave das suas mãos. Ao fim passou uma loção de hamamelis refrescante que inibia infecção e promovia coagulação rápida dos pequenos vasos sanguíneos atingidos.

Voltou ao quarto, e desejou trocar a camisa para uma vermelha, achou mais jovial, e a gravata deveria então ser fina e longa em tons pasteis. Deu um laço inglês perfeito, vestiu a calça, as meias, o sapato de verniz, o suspensório e então deu-se pela necessidade do colete. Colocou-o, Abotoou os punhos da camisa, colocou abotoaduras douradas combinando com o alfinete da gravata, ajeitou o cinto, vestiu o paletó e ao olhar o relógio no pulso, percebeu que ainda não o colocara. Abriu a segunda gaveta do lado esquerdo da cômoda, escolheu o relógio folheado a ouro, herança do avô, com pulseira corrente maciça também banhada em ouro.

Olhou para o relógio do avô e percebeu que estava sem os óculos, guardados cuidadosamente em estojo herdado do pai, visto que a armadura também fora herança paterna. Estava atrasado, pensou. Chegou à porta e percebeu uma fina garoa sobre a nublada cidade. Voltou, vestiu um sobretudo impermeável, britânico, bem como o guarda-chuva longo e colocou o chapéu panamá de enorme valor passional.

Ao chegar na calçada, não se lembrava do lugar, das casas, das pessoas, da rua, nem da sua própria personalidade. Manteve a calma, respirou fundo. Viu uma moça linda, do outro lado da rua, também com olhar perdido, sob uma sombrinha e uma capa floral, por sobre um elegante vestido rendado. Ela também o viu, acenou com leveza imperial e foi ao seu encontro. Foram se aproximando, se aproximando, se aproximando, até que o espaço entre os dois deixou de existir e passasse a ser o espaço entre suas vidas. 

Estou sonhando, perguntou ele?
Sim, estamos sonhando, mas por favor, não acorde, disse a moça quase sussurrando.
E beijaram-se e abraçaram-se e amaram-se e defenestraram o real pelo onírico até que o sonho se deu por satisfeito. 

É isto aí

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