sábado, 10 de março de 2018

Zadig ou o Destino (Voltaire) Parte VIII - O Ciúme

VIII. O CIÚME

A desgraça de Zadig originou-se da própria ventura, e principalmente de seu mérito. Avistava-se todos os dias com o rei e Astartéia, sua augusta esposa. O encanto da conversação do primeiro ministro era redobrado por esse desejo de agradar que está para o espírito como o ornamento para a beleza; sua juventude e graça causaram insensivelmente em Astartéia uma impressão de que esta a princípio não se apercebeu. Sua paixão crescia no seio da inocência.

Astartéia entregava-se sem escrúpulo e sem temor ao prazer de ver e escutar a um homem tão caro a seu esposo e ao Estado; não cessava de o elogiar perante o rei; falava dele às damas de companhia, que ainda acrescentavam os louvores; tudo concorria para lhe aprofundar no coração a flecha que ela não sentia. Fazia presentes a Zadig, nos quais entrava mais galanteria do que supunha; julgava não lhe falar senão como rainha satisfeita de seus serviços, e suas expressões eram, algumas vezes, as de uma mulher sensível.

Astartéia era muito mais bonita do que aquela Semira que tanto odiava aos caolhos, e do que aquela outra mulher que quisera cortar o nariz ao esposo. A familiaridade de Astartéia, suas ternas frases, de que começava a corar, seus olhares, queria desviar, e que se fixavam nos dele, acenderam no coração de Zadig uma flama que o espantou. Lutou; pediu socorro à filosofia, que sempre lhe valera; mas só lhe obteve luzes, não recebendo em troca nenhum alívio. O dever, a gratidão, a soberana majestade violada, apresentavam-se-lhe aos olhos como deuses vindicativos; lutava e triunfava; mas essa vitória que era preciso renovar a todo momento, custava-lhe gemidos e lágrimas.

Não mais ousava falar à rainha com aquela doce liberdade que tais encantos tivera para ambos; seus olhos cobriam-se de uma nuvem; suas palavras eram constrangidas e incoerentes; baixava as pálpebras; e quando, sem querer, o seu olhar se voltava para Astartéia, encontrava o da rainha turbado de lágrimas, de onde partiam raios; pareciam dizer um ao outro: "Nós nos adoramos, e temos medo do amor; ardemos os dois num fogo que condenamos."

Zadig retirava-se desvairado da sua presença, com um peso no coração, que não mais podia suportar; na violência da sua agitação, não pôde evitar que o amigo Cador lhe descobrisse o segredo, como um homem que, tendo agüentado por muito tempo uma dor profunda, deixa enfim revelar-se o seu mal, por um grito que lhe arranca um acesso mais agudo e pelo suor que poreja a fronte.

- Já desvendei - lhe disse Cador - os sentimentos que a ti mesmo procuravas ocultar; as paixões têm sinais que não enganam. Por aí verás, meu caro Zadig, já que eu li no teu coração, se o próprio rei não irá descobrir um sentimento que o ofende. Não tem êle outro defeito senão o de ser o mais ciumento dos homens. Resistes à tua paixão com mais fôrça do que a rainha combate a sua, porque és filósofo e porque és Zadig. Astartéia é mulher; deixa falar seus olhares com tanto maior imprudência por ainda não se julgar culpada. Infelizmente tranqüilizada pela sua inocência, negligencia as aparências necessárias. Tremerei por ela enquanto não tiver nada que se censurar. Se estivessem ambos em cumplicidade, saberiam enganar todos os olhos: uma paixão nascente e combatida logo se revela; um amor satisfeito sabe ocultar-se.

Zadig fremiu à idéia de trair o rei seu benfeitor; e nunca foi tão fiel ao príncipe como quando se viu
culpado para com êle de um crime involuntário. Contudo, tantas vezes pronunciava a rainha o nome de Zadig, tal rubor lhe cobria a fronte ao dizê-lo; ora se mostrava tão animada, ora tão interdita, quando lhe falava em presença do rei; caía em tão profundas cismas depois que Zadig se retirava, que o rei se sentiu inquieto. Acreditou tudo o que via, e imaginou tudo o não via.

Observou  principalmente que as babuchas de sua mulher eram azuis, e que as babuchas de Zadig eram azuis, que as fitas da touca de sua mulher eram amarelas, e que o barrete de Zadig era amarelo: indícios terríveis para um príncipe suscetível. No seu espírito envenenado, transformaram-se as suspeitas em certezas.

Os escravos dos reis e das rainhas são outros tantos espias de seus corações. Descobriram logo que
Astartéia amava e que Moabdar sentia ciúmes. O invejoso fez a invejosa enviar ao rei a sua liga, que se assemelhava à da rainha. Por cúmulo da desgraça, essa liga era azul, O monarca não pensou senão na maneira de vingar-se. Resolveu uma noite mandar envenenar a rainha, e enforcar Zadig ao raiar do dia. A ordem foi transmitida a um impiedoso eunuco, executor das suas vinganças.

Achava-se então na câmara do rei um anãozinho que era mudo, mas não surdo. Toleravam-no sempre em toda parte: era testemunha de tudo o que se passava de mais secreto, como um animal doméstico. Esse pequeno mudo era muito devotado à rainha e a Zadig. Ouviu, com tanta surpresa quanto horror, a sentença de morte. Mas como prevenir essa terrível ordem, que dentro em poucas horas seria executada? Escrever, não sabia; mas aprendera a desenhar e fazia retratos com muita parecença. Passou uma parte da noite a rabiscar o que desejaria dizer à rainha.

O desenho representava o rei furioso, a um canto do quadro; um cordão azul e um vaso sôbre uma mesa, com ligas azuis e fitas amarelas; a rainha, no meio do quadro, expirante entre os braços de suas mulheres, e Zadig estrangulado a seus pés. O horizonte representava um sol nascente, para indicar que a horrível execução se efetuaria aos primeiros raios da aurora. Logo que terminou o trabalho, correu a uma camareira de Astartéia, despertou-a, e deu-lhe a entender que era preciso levar imediatamente o quadro à rainha.

Em meio à noite, batem à porta de Zadig; acordam-no; entregam-lhe um bilhete da rainha; pensa que está sonhando; abre o papel com mão tremente. Qual não foi a sua surpresa, e quem lhe poderia exprimir a consternação e desespero, ao ler as seguintes palavras:

"Foge imediatamente, senão te arrancam a vida. Foge, Zadig, ordeno-te em nome do nosso amor e das minhas fitas amarelas. Eu não era culpada; mas sinto que vou morrer criminosa."

Zadig mal teve fôrças de falar. Mandou chamar Cador e, sem nada lhe dizer, mostrou-lhe o bilhete.

Cador forçou-o a obedecer e a tomar logo o caminho de Mênfis. "Se te atreves a ir falar com a rainha, apressas a sua morte; se falares ao rei, da mesma forma prejudicarás a rainha. Encarrego-me do seu
destino; segue o teu. Espalharei o boato de que partiste para a Índia Em breve me encontrarei contigo e te comunicarei o que houver sucedido em Babilônia".

Cador, no mesmo instante, mandou trazer dois dromedários dos mais rápidos a uma porta secreta do palácio; fêz com que Zadig montasse tendo até de ampará-lo, pois parecia prestes a entregar a alma. Um só criado o acompanhou; em breve Cador, transido de espanto e angústia, perdeu de vista o amigo.

O ilustre fugitivo, chegando ao alto de uma colina de onde se avistava Babilônia, volveu o olhar para o palácio da rainha, e desfaleceu; só recuperou os sentidos para derramar lágrimas e desejar a morte. Enfim, depois, de se haver ocupado do deplorável destino da mais amável entre as mulheres e a  primeira do mundo, voltou o pensamento para si mesmo e exclamou:

"Que coisa é então a vida humana? De que me serviste, ó virtude? Duas mulheres me enganaram indignamente; a terceira, que não é culpada, e mais bela que as outras, vai perder a vida. Todo o bem que pratiquei foi sempre para mim uma fonte de maldições, e só fui elevado ao cúmulo da grandeza para tombar no mais horrível precipício do infortúnio. Se eu tivesse sido mau como tantos outros, seria hoje feliz como eles".

Acabrunhado por essas funestas reflexões, cobertos os olhos pelo véu da dor, a palidez da morte nas faces, e a alma abismada no mais sombrio desespero, se guia ele a caminho do Egito.

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