segunda-feira, 12 de março de 2018

Zadig ou o Destino (Voltaire) Parte X - A escravidão

X. A ESCRAVIDÃO

Ao entrar na cidade egípcia, viu-se cercado pelo povo.

- Eis o que raptou a bela Missuf bradavam - e o que acaba de assassinar Cletófis!

- Senhores disse êle, - Deus me livre de raptar algum dia a vossa bela Missuf! É demasiado caprichosa. E, quanto a Cletófis, não o matei: apenas me defendi contra êle. Queria matar-me, porque lhe pedi com




tôda a humildade que poupasse a bela Missuf, a quem batia impiedosamente. Sou um estrangeiro que




vem procurar asilo no Egito; e não teria cabimento que, vindo solicitar vossa proteção, começasse por me




apoderar de uma mulher e por assassinar um homem.




Os egípcios eram então justos e humanos. O povo conduziu Zadig à prefeitura. Começaram por lhe tratar




do ferimento, e em seguida o interrogaram, a êle e ao criado separadamente, a fim de saber a verdade.




Reconheceu-se que Zadig não era um assassino; mas sendo culpado de ter vertido sangue humano, a lei o




condenava à escravidão. Os seus dois camelos foram vendidos em proveito da comuna, repartido entre os




Zadig




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habitantes todo o ouro que trouxera, e sua pessoa exposta em hasta pública, bem como o seu




companheiro de viagem. Um mercador árabe, chamado Setoc, arrematou-o; mas o criado, mais resistente




à fadiga, foi vendido muito mais caro que o patrão. Nem faziam comparação entre os dois Zadig ficou,




como escravo, subordinado a seu serviçal; ligaram um ao outro por uma cadeia prêsa aos tornozelos e,




nesse estado, acompanharam ambos o seu senhor. Zadig, pelo caminho, consolava o criado e exortava-o




à paciência; mas, segundo o seu costume, fazia reflexões sôbre a vida humana: "Vejo - dizia-lhe - que os




males do meu destino se expandem sôbre o teu. Até agora, tudo me saiu muito estranho, na verdade.




Multaram-me por causa de um grifo; mandaram-me a suplício por ter feito versos em louvor do rei;




estive prestes a ser estrangulado porque a rainha tinha fitas amarelas; e eis-me agora escravizado contigo




porque um brutamontes deu uma sova na amante. Mas não percamos a coragem; tudo isso, decerto,




acabará; afinal de contas, os mercadores árabes têm de possuir escravos; e por que não seria eu um




escravo como qualquer outro, visto que sou um homem como qualquer outro? Êsse mercador não pode




ser impiedoso, pois terá de tratar bem a seus escravos, se quiser aproveitá-los". Assim falava êle, mas, no




fundo do coração, estava preocupado com a sorte da rainha de Babilônia.




Setoc, o mercador, partiu, dois dias depois, para a Arábia deserta, com os escravos e camelos. Sua tribo




habitava para as bandas do deserto de Horeb, e a viagem foi longa e penosa.




Setoc, no caminho, fazia mais caso do criado que do patrão, pois o primeiro sabia lidar melhor com os




camelos, e tôdas as pequenas regalias foram para êle.




Um camelo morreu a dois dias de Horeb; dividiram-lhe a carga pelos escravos; Zadig ganhou o seu




quinhão. Setoc pôs-se a rir ao ver todos os escravos marcharem curvados. Zadig tomou a liberdade de




explicar-lhe a razão, e fêz-lhe conhecer as leis do equilíbrio. O mercador, espantado, começou a olhá-lo




de outra maneira. Zadig, vendo que lhe excitava a curiosidade, redobrou-a ensinando-lhe muitas coisas




que não eram estranhas a seu comércio: o pêso específico doa metais e dos gêneros em volume igual; as




propriedades de vários animais úteis; os meios de tornar úteis os que não o eram; em suma,




afigurou-se-lhe um verdadeiro sábio. Setoc o preferiu a seu camarada, a quem tanto estimara. Tratou-o




bem, e não teve de que se arrepender.




Chegado à sua tribo, Setoc reclamou duzentas onças de prata a um hebreu a quem as emprestara em




presença de duas testemunhas; mas estas haviam morrido, e o hebreu disso se aproveitara para ficar com




o dinheiro do mercador, dando graças a Deus por lhe haver proporcionado ensejo de enganar a um árabe.




Setoc confiou a dificuldade a Zadig, que se tornara seu conselheiro.




- Em que local emprestou suas quinhentas onças a êsse infiel? - perguntou-lhe Zadig.




- Sôbre uma larga pedra que se acha ao pé do monte Horeb.




- Qual é o caráter de seu devedor?




- O de um legítimo velhaco.




- Mas o que lhe pergunto é se é um homem vivo ou fleugmático, atilado ou imprudente.




- De todos os maus pagadores, é o mais vivo que eu conheço.




- Pois bem! - insistiu Zadig. - Permita que pleiteie sua causa perante o juiz.




Com efeito, citou o hebreu ao tribunal, e assim falou ao juiz:




Zadig




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- Almofada do trono da eqüidade, venho reclamar a êsse homem em nome de meu senhor, quinhentas




onças de prata, que êle não quer devolver.




- Há testemunhas?




- Não, morreram; mas existe uma larga pedra sôbre a qual foi contado o dinheiro; e, se aprouver a Vossa




Grandeza mandar trazê-la, espero que ela preste testemunho; aqui ficaremos, o israelita e eu, à espera de




que chegue essa pedra; mandarei buscá-la por conta de Setoc, meu senhor.




- Muito bem - concordou o juiz. E pôs-se a despachar outros assuntos.




- E então? - disse êle a Zadig no fim da audiência. - Ainda não chegou a sua pedra?




O hebreu retrucou a rir:




- Poderia Vossa Grandeza ficar aqui até amanhã, que a pedra ainda não chegaria; está a mais de seis




milhas de distância e seria preciso uns quinze homens para transportá-la.




- Estais vendo?! - exclamou Zadig. - Bem disse eu que a pedra prestaria testemunho; já que êsse homem




sabe onde está a pedra, confessa, pois, que foi sôbre ela que se contou o dinheiro.




O hebreu, interdito, viu-se logo obrigado a confessar tudo. O juiz ordenou que fôsse êle atado à pedra,




sem beber nem comer, até devolver as quinhentas onças, que foram pagas sem demora.




O escravo Zadig e a pedra alcançaram grande fama em tôda a Arábia.

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