domingo, 14 de fevereiro de 2021

Nos encontraremos novamente


A dor do próximo está cada vez mais distante das políticas públicas em todas as esferas. Fico impressionado com o fato de vizinhos e parentes muitas vezes não perceberem nada ou serem completamente indiferentes quando uma pessoa desaparece. Há cada vez mais pessoas que desaparecem da nossa sociedade – sem que ninguém se interesse. Elas não recebem nenhuma atenção dos outros, e não apenas na morte, mas também em vida

Angústia, tristeza, enfermidade, velhice, depressão, endividamento e empobrecimento eram até então os isolantes sociais. Agora temos a modalidade viral letal, que só vem a acrescentar mais infortúnio à vida. E falando de modalidade viral letal, episódios isolados, parecidos com os que você conhece, recolhidos aqui e ali:

Dinha se preparou para o Carnaval desde a Quarta-Feira de Cinzas do ano anterior. Fez fantasia para o Sábado e segunda e outra mais sofisticada para o Domingo e terça. Comprou o Abadá para a véspera, na sexta e na despedida na quarta-feira de cinzas. Só não contava com a novidade contagiante do ano que se arrastou feito mato no meio da grama.

Cardosinho agendou as férias com um ano de antecedência. Comprou o pacote dos sonhos na agência de turismo. Esposa e crianças falaram sobre o tema meses a fio. Estudaram locais de visitação, costumes regionais, alimentação, onde comprar, o que ver, o que visitar, etc. Cardosinho ficou a ver navios parados no porto.

Delicinha sonhou com o encontro com seu grande amor, se preparou, se benzeu, se arrumou, se compôs, se refez, se benzeu, se encantou consigo mesma, só não contava com o seu grande amor receber a visita viral antes na véspera do enlace. Delicinha sentiu uma enorme pontada no peito.

Quinca Lòpez nunca acreditou nisto - era uma gripezinha, dizia aqui e ali, nas filas, nas festas, nos eventos, na feira, no banco, na intimidade do lar matriz e na intimidade do lar filial. Encontrou-se finalmente com sua parte viral, passou por semanas ruins, entubado, indo e vindo do Além. Quinca Lòpez saiu deste episódio convencido que os médicos exageraram e foi a medalhinha do seu clube do coração que o salvara, pois prometeu viver para vê-lo ser campeão.

Amelinha nunca ouviu falar nisto ou disto. Nem por isso deixou de comparecer nas obrigações do corpo e da alma. Amelinha foi enterrada sem cerimônias, numa tarde chuvosa de quinta-feira, anônima, sem alardes, sem estar nas estatísticas sem nada a não ser a fé de que nos encontraremos novamente.

É isto aí!

*Foto - sepultura do Cemitério Guayaquil / Equador

 

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