quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Histórias para aquecer o coração


Tem muito tempo que estou aqui? Olá? Alguém? Olá!! Puxa vida, não recordo de nada. Será que morri? Estou morto vivo ou vivo morto? Só mecho os olhos, que coisa mais irritante. O teto é bege. Se Iaiá tivesse aqui falaria que era pérola ou creme. Engraçado... Iaiá... por que lembrei dela agora?

Tinha doze anos, estudávamos juntos. Foi meu primeiro grande e mais dolorido amor, que durou uma eternidade de pelo menos uns dois a três meses, eu acho, até que virei uma coisa diferente, beijei na boca da Carminha, nossa, a Carminha..., feia prá caramba, mas me ensinou tanta coisa. Puxa vida, a Carminha. Depois sumiu, não é? Sumiu. 

O caso se deu quando flagrou minha insandice com Julimar, sua irmã caçula, que era uma das coisinhas mais lindas e porcelanas que Deus botou no mundo, fui feliz com ela enquanto deu para ser. Julimar... - Já na faculdade, encontrei com ela no corredor do hospital, abatida, coitada, magrinha, pele toda enrugada, e ao seu lado a danada da Carminha, que estava linda de dar inveja. Viram e desviraram - sinal de que fui assunto por pelo menos uma década.

Ainda na capital reencontrei Iaiá, linda, apaixonei feito a primeira vez. Éramos referência de família, de caipirice, e isto de certa forma facilitou a união, que delirou em tudo até Iaiá desabrochar em amor a um qualquer bonito e rico. Ficaram as cores e a lembrança. Nunca mais vi. Engraçado que desta vez não chorei, talvez por que Mirinha estava desde há muito ao meu lado, antes, durante e depois de Iaiá.

Mirinha não ligava que eu gandaiasse, dizia que o que era dela era dela, e que eu sempre voltava por que estava escrito nas estrelas. Bobo que fui, quando assustei o casamento estava marcado. Fui para Machu Picchu, e por lá fiquei uns seis meses, muito doidão, até que esquecessem de mim. Rapaz, foi lá que conheci a Esterzinha, que menina doida. Artesanato, sexo, droga e de vez em quando banho e comida. Seis meses assim.

Não voltei à capital, com vergonha da Mirinha, e fui parar longe, em Brasília, onde depois do espalho do meu pai, acabei a faculdade, casei sem nem perceber, com uma moça do Maranhão, engraçadinha, e deu que um dia ela fugiu com um sujeito redondo, esquisito, que tinha uma empresa de gás, água mineral, sei lá. Tempos depois o irmão dela me procurou e pediu para providenciar o divórcio, nem lembrava mais dela, mas foi bom. 

E agora estou aqui, lembrando de Iaiá... Acho que vou desmaiar... será que morri? Acordo ainda divagando, tem uma mulher olhando fixamente para mim. Estranho, seu rosto é familiar. Tem um sorriso delicado, lábios carnudos - sempre gostei de lábios carnudos. Custo a entender o que está se passando. Torno a perder os sentidos.

Não sei quantos dias estou aqui. Mas a força física está retornando. Quero sentar. Abro os olhos, estico as mãos para segurar na grade da cama, e sinto uma mão à minha. Auxilia com carinho, apoia meu corpo ao seu. Olho para ela, que sorriso é este? Olho... olho... bem no fundo e vem a luz - Mirinha!!! - penso comigo - puta que pariu, se não morri agora morro.

- Mirinha! É você!! Puxa vida... quanto tempo...

- Pois é, quanto tempo... dezoito anos, sete meses, onze dias desde a última vez que falou meu nome, assim, olhando nos meus olhos. 

- Mirinha... o que faz aqui? Onde estou? O que aconteceu? 

- Não se lembra?

- De nós dois? Sim, puxa vida Mirinha, fiz um papelão. Não fui homem.

- Não! Para com isto. Você teve dúvidas e aí me deu a liberdade para procurar um novo caminho, um rumo que trilhasse em paz. Mas como sempre te falei - estava escrito nas estrelas. Eu sempre te amei e por isto sempre soube que tudo tinha uma razão.

- (chorando) Puxa vida, Mirinha, não sei nem o que falar. Mas o que está acontecendo comigo?

- Você está bem, está vivo - teve um desmaio na rua e o trouxeram para este hospital, onde trabalho.

- Você é médica aqui? Onde estou, que cidade é esta?

- Não, eu formei como assistente social, e vim para cá num concurso público e aí quando me chamaram por que você não tinha nenhum documento, eu te vi e falei era meu conhecido. E quanto ao desmaio, os médicos não encontraram nenhuma causa provável. Você não se lembra de nada?  Tem algum motivo especial para estar aqui? Veio passear?

- Mirinha, não lembro de nada. Recordo vagamente que saí de férias, isto, saí de férias e resolvi passear na casa da minha mãe. Geralmente ia de avião, mas desta vez resolvi dirigir e me perdi na estrada, sei lá, comecei a ficar esquisito, meio que querendo desmaiar, e lembro vagamente de umas pessoas pegando as coisas no carro, deve ser por isto que estou sem documentos, sem celular, achei que era sonho. Então foi isto.

- E sabe que dia é hoje? Hoje, há vinte anos, foi a primeira vez que nos vimos. Foi um empurrão do céu para que nos reencontrássemos.

-  Mirinha, você ainda quer casar comigo?

- Não.

- Por que não?

- Senão você foge, e eu não quero correr este risco novamente. Agora você é meu e só meu, mas com liberdade para ir e vir, sem precisar fugir nunca mais.

É isto aí!  


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